Medici Assessoria
O Guia Essencial do Treinamento de Ciclismo Baseado em Potência: FTP, Zonas e Aplicação Prática

O treinamento de ciclismo evoluiu drasticamente nas últimas décadas, movendo-se de métodos subjetivos (como percepção de esforço) para uma abordagem quantitativa e altamente precisa. O "coração" desta revolução é a utilização de medidores de potência (power meters), que fornecem a métrica mais confiável da carga de trabalho: watts. Este artigo desvenda os conceitos centrais do treinamento baseado em potência, desde a medição inicial até a aplicação nas sessões diárias.
A Métrica Real: Por Que a Potência é a Chave?
Enquanto a frequência cardíaca (FC) e a velocidade são métricas úteis, elas sofrem com a latência e a variabilidade. A FC é afetada por fatores como fadiga, temperatura, hidratação e uso de suplementos ou bebidas contendo cafeína. Já a velocidade é influenciada pelo vento, inclinação e vácuo (quando o ciclista se posiciona atrás de outro ou em um pelotão).
A potência (P), medida em watts (W), é o resultado direto da força aplicada nos pedais. Ela reflete o trabalho mecânico real, ou seja, a saída de energia instantânea do ciclista, tornando-a a variável de treino mais objetiva e imediata.
Potência(W) = Força (N)×Velocidade Angular(rad/s)
O Ponto de Partida: Determinando o FTP
O Limiar de Potência Funcional (FTP, sigla em inglês para Functional Threshold Power) é o alicerce do treinamento baseado em potência.
Definição Técnica: O FTP é a potência máxima que um ciclista pode sustentar em um estado de quase equilíbrio metabólico, geralmente por aproximadamente uma hora (~40 a 70 minutos). Ele representa a potência no limiar anaeróbio (LA), o ponto onde a produção de lactato começa a exceder a capacidade de “limpeza”, levando à fadiga inevitável.
* “limpeza” aqui se refere ao acúmulo de lactato maior do que a sua capacidade de remoção e metabolização. O lactato em si não é um “vilão” mas um subproduto do metabolismo pelo excesso de íons de hidrogênio (H+), que afeta o pH intra e extra celular. É mais fácil e barato avaliar o nível de lactato no sangue do que H+ por isso ele é utilizado como marcador metabólico
O Teste de Campo Padrão (20 Minutos)
Embora o teste de 60 minutos seja a definição original, ele é extenuante e impraticável para a maioria. O protocolo mais comum é o teste de 20 minutos:
- Aquecimento (20 min): Ritmo leve, incluindo 3 a 5 sprints de 1 minuto para "ativar" as pernas.
- Esforço Máximo (20 min): Mantenha a potência mais alta e estável possível por 20 minutos.
- Cálculo: Multiplique a potência média (Pmédia) dos 20 minutos por 0,95.
FTP = Pmédia_20min×0,95
As Zonas de Treinamento de Potência (Power Zones)
Uma vez que o FTP é estabelecido, ele é usado para definir as Zonas de Treinamento (Training Zones), que são faixas percentuais do FTP. Cada zona corresponde a uma adaptação fisiológica específica. O modelo mais aceito é o de sete zonas de Andrew Coggan, Ph.D.

Tabela: As Sete Zonas de Treinamento de Potência de Coggan
Aplicando a Potência: Métricas Avançadas
Além do FTP e das zonas, o treinamento de potência introduziu métricas avançadas essenciais para a análise pós-treino e planejamento.
1. Potência Normalizada (NP, sigla em inglês para Normalized Power)
Em um percurso com subidas, descidas e paradas, a Pmédia não reflete o custo fisiológico real. A NP é um cálculo complexo (via algoritmo) que compensa as variações de intensidade, fornecendo uma estimativa da potência que o ciclista poderia ter sustentado se o esforço fosse constante para o mesmo custo fisiológico.
- Uso: A NP é a métrica mais precisa para determinar o estresse metabólico de um treino.
2. Fator de Intensidade (IF, sigla em inglês para Intensity Factor)
O IF é uma razão simples que compara a NP de uma sessão com o FTP do ciclista:
IF = NP / FTP
- Uso: Determina o quão "difícil" foi um treino em relação à sua capacidade máxima. Um IF de 0,75 indica uma intensidade moderada/baixa (Z2/Z3), enquanto um IF de 0,95 a 1,05 indica um esforço no Limiar (Z4).
3. Pontuação de Estresse de Treinamento (TSS sigla em inglês para Training Stress Score)
O TSS é o "coração" do gerenciamento de carga. É um valor que quantifica a carga de trabalho de cada sessão de treino. Ele considera a intensidade (IF) e a duração (T em horas):
TSS = (T×NP×IF) / (3600×FTP) ×100
- Uso: * TSS<150: Carga baixa, recuperação rápida.
- TSS=150−300: Carga moderada, recuperação no dia seguinte.
- TSS>400: Carga alta, recuperação de 48 a 72 horas.
- Acompanhar o TSS acumulado permite planejar a progressão (ATL, CTL, TSB), evitando o overtraining.
Conclusão
O treinamento baseado em potência oferece o caminho mais claro e eficiente para a melhoria do desempenho no ciclismo. Ao basear seu plano no FTP e manipular com precisão as Zonas, monitorando a carga através do TSS, o ciclista transforma o "pedalar forte" em uma ciência exata.

Fábio Medici Lorenzeti,
Profissional de Educação Física
Mestre em Ciências (EEFE-USP, Lab. de nutrição e metabolismo aplicado a atividade motora).
Autor dos livros: Nutrição e Suplementação Esportiva: aspectos metabólicos, fitoterápicos e da nutrigenômica (2015, Phorte); Exercício, Emagrecimento e Intensidade de Treinamento: aspectos fisiológicos e metodológicos (2013/2ª ed., Phorte); Biologia e Bioquímica: Bases aplicadas às ciências da saúde (2011, Phorte). Além de outros trabalhos científicos nacionais e internacionais.
